‘Yes, nós temos montanhas’ e elas estão cheias de vida


Na coluna desta semana, Luciano Lima explica por que as montanhas brasileiras são “armários” que guardam uma enorme riqueza de espécies. Expedição capixaba feminina chega ao topo da Serra da Mantiqueira, Espírito Santo
Expedição Mulheres no Topo
Às vezes, podemos nos prender em termos e regras aprendidas na escola ou na faculdade. Antes de questionar conceitos, é importante conhecer todas as perspectivas. Nesta semana, Luciano Lima assegura que, sim, temos montanhas no Brasil e elas estão repletas de vida.
Se você se interessa por aves, talvez já tenha ouvido alguém dizer, geralmente em tom professoral, a famosa frase “nem toda ave é um pássaro, mas todo pássaro é uma ave”. Balela. Ave e pássaro são sinônimos, tanto para o dicionário quanto para os ornitólogos.
Pode soar esquisito para alguns, mas não há nada tecnicamente errado em dizer que a ema é um “passarão”. Para os interessados no tema sugiro que busquem pelo excelente texto, “Todas as aves são pássaros” do também excelente ornitólogo Fernando Straube.
Mas a ornitologia não é a única disciplina com “frases feitas” tecnicistas, evocadas por gente que acha que entende ou quer fingir entender de um assunto. A geografia e a geologia também tem uma famosa frase geralmente dita em tom professoral: “no Brasil, não temos montanhas”. Outra balela.
Histórias Naturais é a coluna semanal do biólogo Luciano Lima no Terra da Gente
Arte/TG
Enquanto escrevo esse texto da minha janela consigo observar duas das mais imponentes cadeias de montanhas brasileiras, a Serra da Mantiqueira e a Serra do Mar. Mas além do “ver para crer” de um biólogo, a geomorfologia (disciplina que estuda as formas de relevo da superfície terrestre) tem uma definição técnica do que é uma montanha.
De acordo com o grande geógrafo Antônio Teixeira Guerra em seu “Dicionário Geológico-Geomofológico”, montanha é “uma grande elevação natural do terreno, com altitude superior a 300 metros e constituída por um agrupamento de morros”.
Mesmo sendo um tema fascinante, não vou entrar em detalhes sobre os processos de formação das montanhas. Mas uma informação interessante é que as montanhas brasileiras não estão mais crescendo, diferentes dos Andes, por exemplo, cordilheira que chega a crescer 4 cm por ano em alguns trechos.
Por isso, aos poucos, nossas montanhas vão sendo erodidas pela ação das intempéries e estão diminuindo de tamanho. A Serra do Mar, por exemplo, que hoje não ultrapassa os 2.400 mil metros de altitude, já se ergueu acima dos 4 mil metros.
Independente do processo de formação, e se estão crescendo ou diminuindo, as montanhas por todo mundo tem algo em comum: são importantes refúgios para biodiversidade. Já comentei aqui no Histórias Naturais que diversidade de habitats é igual a diversidade de espécies. Diferentes altitudes de uma mesma montanha estão sujeitas a condições distinta de temperatura e umidade, o que por sua vez resulta em diferentes ambientes.
Sempre que você olhar para uma montanha imagine que você está olhando para um gigantesco armário onde se empilham diferentes gavetas que contém diferentes conjuntos de espécies. Os pássaros da Mata Atlântica, ilustram muito bem como as montanhas são compostas por diferentes ambientes e, por isso, são capazes de “guardar” uma enorme diversidade biológica.
Estrada da Graciosa cruza a Serra do Mar do Paraná
Carlos Renato Fernandes
Dentro dos limites da Mata Atlântica estão algumas das principais cadeias montanhosas do Brasil, incluindo a Serra do Mar, que se estende do norte do Rio Grande do Sul até o norte do Rio de Janeiro. Embora algumas espécies menos exigentes, como o pitiguari e o bem-te-vi, possam ser encontradas praticamente ao longo de toda a montanha, muitas aves seguem padrões de distribuição altitudinal, ocorrendo apenas em faixas específicas de ambientes/altitudes.
A Serra da Bocaina, um trecho da Serra do Mar localizado no extremo sul do Rio de Janeiro e norte de São Paulo, é um ótimo lugar para observar a variação das aves ao longo de diferentes altitudes. Passados os manguezais à beira-mar, e até 50 metros de altitude, está a floresta de terras baixas, ambiente típico de espécies como o pintadinho (Drymophila squamata), a choquinha-cinzenta (Myrmotherula unicolor) e o vissiá (Rhytipterna simplex).
Rhytipterna simplex, conhecido popularmente como vissiá
Bruno Siqueira / iNaturalist
Subindo a encosta da serra, entre 50 e 600 metros, está a floresta submontana. Diversas espécies são compartilhadas entre ela e a floresta de terras baixas, como, por exemplo, a saíra-militar (Tangara cyanocephala), o beija-flor-rajado (Ramphodon naevius), a borralhara (Mackenziaena severa) e o tucano-de-bico-preto (Ramphastos vitellinus). No entanto, algumas são mais abundantes na floresta submontana, como o entufado (Merulaxis ater) e a catirumbava (Orthogonys chloricterus).
Passados os 600 metros de altitude, inicia-se a floresta montana, que sobe a serra até cerca de 1.500 metros. É onde se pode ouvir o canto insistente do corocochó (Carpornis cucullata) e também são encontradas espécies como o sanhaço-pardo (Orchesticus abeillei) e o papa-moscas-de-olheira (Phylloscartes oustaleti).
Mais acima, o frio e o canto triste da saudade (Lipaugus ater) indicam que estamos acima dos 1.500 metros de altitude, na floresta altomontana, ou floresta das nuvens, como também é conhecida por estar sempre imersa em neblina. Assim como a temperatura, as árvores também diminuem e a copas geralmente estão abaixo dos dez metros de altura.
Apesar do frio, muitas aves garantem cor, som e movimento ao topo da montanha. Beija-flor-de-topete-verde (Stephanoxis lalandi), saíra-lagarta (Tangara desmaresti), sanhaço-frade (Stephanophorus diadematus), quete-de-sudeste (Microspingus lateralis) são todas espécies endêmicas, ou seja, exclusivas da Mata Atlântica e que, na região sudeste, estão sempre associadas a montanhas com altitudes mais elevadas.
Microspingus lateralis, conhecido popularmente como quete-do-sudeste
Pimenta / iNaturalist
Acima dos 1.500 metros de altitude, pode ser encontrado um ambiente único, os campos de altitude. Apesar de ser um campo, praticamente é um local sem árvores .
É interessante notar que muitas espécies que são parentes próximas dividem a montanha, ocupando diferentes altitudes e assim evitando competição por alimento, abrigo e outros recursos. Um bom exemplo dessa situação é o tucano-de-bico-preto, que prefere as baixadas, ao passo que o tucano-de-bico-verde (Ramphastos dicolorus) prefere altitudes mais elevadas.
O chupa-dente-de-máscara-negra (Conopophaga melanops) e o chupa-dente (Conopophaga lineata), o surucuá-grande-de-barriga-amarela (Trogon virdis) e o surucuá-variado (Trogon surrucura), a borralhara (Mackeziaena severa) e a borralhara-assobiadora (Mackenziaena leachii), são mais algumas das muitas espécies aparentadas que seguem esse padrão de divisão baixo/alto.
Existem ainda aves que migram ao longo da serra, ocupando diferentes altitudes em épocas distintas do ano, mas esse é papo para um outro Histórias Naturais.
Parodiando o título da famosa marchinha de carnaval “Yes, nós temos bananas”, “Yes, nós temos montanhas”! E como um grande armário, ou talvez como um grande baú, elas estão cheias de riqueza “em espécie”.
*Luciano Lima é ornitólogo e integra a equipe do Terra da Gente
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