Medo do Escuro: veja imagens de perícias que tentaram desvendar causa da morte de João Paulo


Primeiro exame apontou causa da morte como “indeterminada” e novo procedimento realizado por legistas da Unicamp, após exumação, gerou diferentes interpretações.
Caso João Paulo: Laudos e entrevistas evidenciam falta de consenso sobre causa da morte
Afogamento ou homicídio? Laudos, informações à Justiça e entrevistas evidenciam a falta de consenso sobre a causa da morte do garoto João Paulo Brancalion, de 9 anos, em 17 de dezembro de 1989.
Embora fosse essencial para as investigações, o laudo que de fato apontou uma causa da morte ficou pronto apenas em junho de 1990, seis meses após o crime. E, no intervalo de tempo até que fosse enviado à polícia, surgiram especulações e boatos sobre o caso na cidade, o que levou o primeiro delegado a deixar o caso.
Também nessa época, já apareciam supostas pistas que não levavam a apuração a lugar algum, um dos elementos que fizeram a investigação policial se estender por quatro anos. Além disso, surgiu uma denúncia contra um padre do colégio.
Esta reportagem acompanha o segundo episódio do podcast “Medo do Escuro – O Caso João Paulo”, sobre um garoto de 9 anos encontrado morto dentro de um freezer em um colégio católico tradicional. Um dos crimes mais emblemáticos da história de Piracicaba, que completa 35 anos em 2024.
Ouça aqui o primeiro episódio do podcast
O texto abaixo contém revelações sobre o segundo episódio do podcast. A recomendação é ouvi-lo antes (acesse o link abaixo) e ler a reportagem depois.
Uma das primeiras hipóteses levantadas era de que o garoto poderia ter se trancado por acidente dentro do freezer e morrido sem conseguir respirar. Essa tese, no entanto, foi rejeitada logo de início pela família da vítima.
“Eu acredito que fizeram isso com ele, não ele sozinho, não ele se esconder para ele tentar se matar. Não teria, de jeito nenhum”, disse a mãe de João Paulo, Zilda Brancalion, em entrevista à EPTV no dia 18 de dezembro de 89, um dia após a localização do corpo.
“Quem trocou o menino ou quem o viu no velório pode constatar que ele foi espancado ou sofreu algum tipo de violência […] É impossível acreditar que um menino inteligente como ele era, tenha entrado e se fechado numa geladeira. Outra coisa também é que ele sempre jogou bola e nunca se feriu daquela maneira. A família precisa de algum esclarecimento”, afirmou Vânia da Silva Macedo, prima da vítima, em entrevista ao Jornal de Piracicaba, em 20 de dezembro de 1989.
Bar onde ficava o freezer onde corpo fica localizado
Reprodução/ FCM-Unicamp
Hipótese de acidente descartada
Mas o laudo pericial do local mostrou que na base dessa geladeira havia um orifício de 1,5 centímetro de diâmetro localizado no centro do assoalho que permitia a saída ou entrada de ar e líquidos.
“A geladeira era suficientemente grande para que a criança pudesse respirar, por horas, sem causar sufocação”, afirma ao g1 o perito Antonio Fernando Macellaro, que trabalhava no Instituto de Criminalística (IC) e assinou o laudo de local.
Isso já anulou a hipótese de que João Paulo pudesse ter se trancado por acidente no freezer e ter ficado sem ar dentro do balcão frigorífico. Além disso, a família e um relatório psicossocial produzido sobre o caso revelaram que João Paulo tinha medo de lugares pequenos, fechados e escuros. Veja trecho do documento com a conclusão:
Trecho de laudo psicossocial sobre a tese de acidente na morte de João Paulo
Reprodução/ Crami

Sinais de contato com água
O laudo pericial do local aponta que as peças de roupa que o menino usava quando foi encontrado estavam perto do corpo, molhadas e praticamente arrumadas. Já um cadarço estava arrancado do sapato, também do lado do menino.
Além disso, a apuração aponta que os cabelos estavam molhados e que as mãos tinham aspecto característico de que tinham ficado um tempo dentro da água.
“A meu ver o cadáver tinha sinais de ter ficado submerso em água. Me pareceu que o corpo foi colocado no refrigerador estando previamente molhado”, relata Macellaro.
Sangue no local e ferimentos
A perícia de local ainda constatou que uma mancha no piso do bar onde ficam os freezers e outra em uma parede de um corredor que leva da quadra esportiva ao local eram de sangue.
Laudo pericial de local mostra onde foram encontradas manchas de sangue (pontos A e B)
Reprodução/ Instituto de Criminalística
Já o exame necroscópico revelou que o corpo já apresentava rigidez cadavérica, um fenômeno que ocorre um tempo após a morte, quando os músculos endurecem. Para os peritos, isso indicava que a morte tinha acontecido havia mais de 10 horas.
Além disso, apontou a existência de ferimentos ou lesões nos seguintes locais do corpo:
Lábio
Nas duas mãos
Tórax
Nos dois joelhos
Pé esquerdo
Vários deles eram superficiais, segundo o documento. O exame também concluiu que não havia lesões que indicassem prática de ato sexual contra a vítima.
O documento ainda diz que os pulmões estavam em caráter normal, ou seja, sem qualquer lesão e sem líquidos dentro deles.
E depois de todas essas análises, a causa da morte foi apontada como “indeterminada”.
Trecho de laudo necroscópico apontando causa da morte como indeterminada
Reprodução/ Instituto Médico Legal
Um exame realizado pelo Instituto Médico Legal (IML), emitido em 28 de dezembro de 1989, mostrou que o pulmão teve uma hemorragia, que é perda de sangue. O rim, fígado e cérebro tinham veias dilatadas e diagnóstico de congestão, que é quando algum local do corpo tem um aumento anormal de sangue.
A exumação
Três meses depois da morte do João Paulo, a Polícia Civil adotou mais uma medida para tentar descobrir a causa da morte do garoto.
“Eu mantive contato com o doutor Badan Palhares, que já naquela época gozava de grande conceito como sendo a maior autoridade em perícias médicas no Brasil. Ele foi contactado por mim, ele compareceu em Piracicaba e decidiu-se fazer a exumação do cadáver”, conta Sérgio Augusto Dias Bastos, delegado seccional à época.
O médico Fortunato Antonio Badan Palhares atuou em casos de repercussão nacional, que o tornaram popular, mas alguns também geraram polêmicas. Um deles foi o da morte de PC Farias, ex-tesoureiro da campanha do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 23 de junho de 1996.
Badan concluiu que a namorada de PC, Suzana Marcolino, o matou e depois cometeu suicídio. Só que em 1997, um outro laudo contestou a tese do Badan e a investigação foi arquivada em 2002.
Legista Badan Palhares conversa com repórter da EPTV Ciro Porto sobre o caso João Paulo
AcervoEP
Reconstituição e primeiras suspeitas
Ainda sem o resultado do segundo exame da causa da morte de João Paulo, que foi realizado em 16 de março de 1990, o inquérito seguia em andamento e depoimentos eram colhidos pela Polícia Civil.
“Nós fomos arrolar testemunha, buscar testemunha. Mas o importante na ocasião era saber o resultado do exame necroscópico, qual foi a causa morte. Eu tô apurando um fato, de repente, totalmente incompatível com o laudo”, relembra Roney Antonio Rodrigues, primeiro delegado responsável pelo caso.
Uma das medidas adotadas na época foi a realização de uma reconstituição. A partir dela, uma das constatações foi de que não seria possível que alguém que uma criança que estivesse trancada dentro do freezer conseguisse sair.
Sobrinho de delegado sai de freezer após participar de reconstituição do crime
AcervoEP
Repercussão do caso
Desde o início, o caso João Paulo tinha cobertura frequente e com destaque pelos jornais locais, gerou reportagens no programa Fantástico, da TV Globo, e trouxe o repórter policial Gil Gomes a Piracicaba.
Na imprensa local, também eram publicados artigos opinativos. Em um deles, publicado no Diário de Piracicaba em 12 de agosto de 1990, havia um tom crítico já no título: “Caso João Paulo: omissão, mentiras e deturpação: a podridão de um sistema”.
A repercussão também vinha acompanhada de cobranças da sociedade.
“Naquele momento, naquela região policial existiam inúmeros problemas que urgiam uma solução. No primeiro dia que estava de trabalho em Piracicaba, teve uma passeata contra a polícia, percorrendo várias ruas da cidade”, relembra Sérgio Augusto Dias Bastos, que assumiu a delegacia seccional da cidade em fevereiro de 1990, dois meses após a morte de João Paulo.
Saída de delegado
E foi em meio a essas especulações e pressões da sociedade que, em um ofício ao delegado seccional, em 3 de abril de 1990, o delegado Roney Rodrigues pede para deixar o caso.
No documento, ele deixa clara a ligação do pedido com a repercussão que tudo ganhou, veja o trecho abaixo:
Trecho de ofício no qual o delegado Roney Rodrigues pede para deixar o caso
Reprodução/ Polícia Civil
Cobranças por Justiça
Quando Roney saiu, quem passou a colher os depoimentos pra dar andamento no inquérito policial foi o seu chefe, o delegado seccional Sérgio Bastos.
E já no terceiro dia depois da saída de Roney, no dia 6 de abril de 1990, pais de alunos enviaram a autoridades uma carta cobrando justiça. Uma carta breve, mas com as palavras “impunidade” e “justiça”. Leia abaixo:
Carta de pais de alunos cobra justiça no caso João Paulo
Reprodução/ Polícia Civil
Suspeitas sobre padre
Além disso, ao menos dois abaixo-assinados pedindo solução pro caso foram realizados. Um naquele mesmo mês, foi entregue com 300 assinaturas à promotoria de justiça. Um segundo, com mais de 100 assinaturas, foi entregue no dia 9 de maio de 1990 na redação do jornal de Piracicaba.
E nessa época do inquérito, no dia 27 de abril de 1990, em depoimento no inquérito sobre o caso João Paulo, um garoto de 14 anos que frequentava o oratório afirmou para a Polícia Civil que tinha sofrido abuso sexual de um padre da escola. Foi aberto um outro inquérito policial para investigar isso especificamente.
O padre sempre negou a acusação e ligou ela a um suposto furto de cheques do oratório pelo garoto. Já o garoto dizia que tinha ganhado o cheque como um presente do padre após os abusos. Uma palavra ficou contra a outra, não foram encontradas provas e o caso foi arquivado em 19 de março de 1991.
Já nas apurações do caso João Paulo, o padre também chegou a ser investigado. Mas ele tinha como álibi o fato de que no dia do desaparecimento tinha ido até São José dos Campos para realizar um casamento, e voltou de lá entre 21h e 21h30. Então, essa apuração sobre o religioso também não avançou.
Em uma declaração em cartório também enviada à justiça, o padre contou mais tarde que teve uma série de reflexos dessas investigações na sua vida, que era chamado de “padre assassino” e a mídia falava do “crime bárbaro do padre”. Ele chegou a ser transferido para uma escola de Campinas, mas pais de alunos começaram a pressionar pela sua saída por causa da repercussão do caso em Piracicaba.
No final de 90, ele largou a batina, se casou com uma mulher e foi morar em uma cidade a 260 quilômetros de Piracicaba para trabalhar no comércio.
“Sempre rolava esse mesmo boato, entendeu? Ficou um tempo essa coisa: ‘foi o padre, não foi o padre’… Depois disse que o padre foi embora. Mas nunca foi provado nada [contra ele]”, relembra o fotojornalista Paulo Alcides Tibério, conhecido como Pauleo, que cobriu o caso pelo Jornal de Piracicaba.
O padre morreu em 20 de outubro de 2014, nessa mesma cidade. Não houve retorno a pedidos de entrevista feitos pelo g1 a familiares dele.
Sérgio Bastos folheia inquérito e Badan Palhares fala com repórter da EPTV ao fundo
AcervoEP
A causa da morte
O resultado do novo exame sobre a causa da morte, realizado por Badan Palhares Bueno Zappa ficou pronto em 11 de junho de 1990, seis meses após a morte do João Paulo. Ele trouxe a seguintes conclusões:
João Paulo morreu por asfixia mecânica. Segundo a perícia, ele apresentava edema pulmonar, que é uma pressão nos vasos desse órgão. Além disso, tinha mãos e pés com a aparência de que ficaram algum tempo na água, além de cabelos e roupas molhados;
O garoto morreu fora do balcão e foi colocado dentro dele depois, o que foi constatado devido à posição do corpo e posição do antebraço esquerdo;
O garoto recebeu ferimentos que sangraram fora do balcão, o que ficou constatado pelas manchas de sangue no chão próximo ao balcão e em uma maçaneta da porta. Essa mancha da maçaneta não estava citada no laudo pericial de local;
Do interior do balcão escorreu cerca de 150 mililitros de líquido. O documento não diz de qual líquido se tratava;
Os fios de cabelo encontrados no peito do garoto são dele mesmo;
Não há sinais de fraturas de ossos.
O perito do IC também reforça a informação de transporte do corpo. “No caso desta criança, houve a dinâmica de movimentação do corpo (transporte dentro da escola), portanto, a cena do crime não se resumia ao local onde jazia o cadáver”, diz Macellaro.
Médico Badan Palhares durante realização de perícia no freezer onde a vítima foi encontrada
Reprodução/ Poder Judiciário
No entanto, o laudo não detalha que tipo de asfixia ocorreu. Em uma reportagem de arquivo da EPTV, Badan comentou o resultado desse exame.
“Nós não encontramos, pelo menos, através das fotografias, que foi o único elemento que nós tivemos agora depois de passado três meses, elementos que pudessem realmente definir um homicídio como sendo homicídio típico. Existe, no entanto, elementos que podemos afirmar com segurança que ele não morreu dentro do freezer”, afirmou.
E ele não descartou a hipótese de afogamento. “Não pode estar descaracterizada, até porque ele tem alguns elementos nos exames realizados durante o primeiro exame necroscópico, bem como na avaliação das fotografias tiradas pela perícia, de que demonstram que este corpo esteve mantido em ambiente úmido”.
Mais tarde nas investigações, já em março de 1996, Badan foi questionado pela juíza do caso, Meibel Farah qual foi a causa provável da morte e se poderia ter sido por esganadura. O legista afirmou que, na sua avaliação, seria por afogamento.
Mas no mês seguinte, ele respondeu novas dúvidas e fez uma observação que deixa tudo mais complexo. Ele afirmou que a maior probabilidade era de que as lesões encontradas no lábio do garoto tinham sido provocadas quando tentaram impedir ele de gritar, já que ele usava aparelho nos dentes.
O g1 fez contato com Badan para pedir uma entrevista sobre o laudo, mas ele informou que não seria possível devido a problemas de saúde que sua esposa atravessava.
Laudo de legistas da Unicamp aponta asfixia mecânica como causa do morte de João Paulo
Reprodução/ FCM-Unicamp
Já um relatório do setor técnico científico do Ministério Público apontou que a hemorragia no pulmão constatada pelo exame necroscópico pode ocorrer tanto em casos de esganadura quanto de afogamento. A conclusão do setor foi de que não se podia afastar hipóteses de afogamento, apesar de não terem sido constatados os sinais mais comuns desse tipo de morte, como a existência de água no pulmão da vítima.
Em relação à tese de afogamento, no entanto, tanto a mãe do João Paulo quanto outros frequentadores do oratório disseram para a polícia que o menino não sabia nadar e não costumava frequentar piscinas. E a maioria dessas pessoas disse que ele não entrou na piscina e não estava com roupas molhadas enquanto foi visto vivo.
Para Sérgio Bastos, o laudo prova que a vítima foi assassinada por sufocação. “Não tem outra forma de ser. É uma questão de interpretação. Porque para ter aquela mancha no pulmão, que foi detalhada pelo legista, ele teria que ter morrido nessas circunstâncias, fazendo grande força para aspirar e não conseguir”.
Segundo ele, a partir do laudo, os investigadores poderiam direcionar melhor as investigações.
Sérgio Bastos, delegado seccional durante a investigação do caso
Rodrigo Pereira/ g1
“A partir daí, nós tivemos a realidade da morte em função de uma morte por sufocação. E dentro de um local determinado. Então, fomos delimitando a área da atuação da polícia. Então, o crime estava dentro do colégio com pessoas ligadas ao colégio e naquela circunstâncias”, diz o então delegado seccional.
Crime semelhante em Charqueada
Em meio à falta de solução para o caso João Paulo, no dia 13 de julho de 1990 – sete meses após a sua morte – aconteceu um outro crime bárbaro em uma cidade vizinha a Piracicaba e com características parecidas: em Charqueada (SP), cidade a 35 quilômetros de Piracicaba, dois garotos, de 8 e 9 anos, foram encontrados mortos em uma caixa térmica, dentro de um salão paroquial.
Uma tragédia que não apenas aumentou o clima de medo como influenciou na linha de investigação do caso João Paulo por um tempo. Isso porque surgiu a hipótese da existência de um serial killer de crianças na região.
Esses desdobramentos serão mostrados no próximo episódio do podcast “Medo do Escuro – O Caso João Paulo”.
Sapatos e roupas de João Paulo foram encontrados arrumados ao lado do corpo
Reprodução/ Poder Judiciário
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