Riscos, desafios e medos: conheça a rotina de quem trabalha em um serpentário


Vinculado ao Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEV), o espaço simula o ambiente natural de espécies e promove ações de pesquisa e educação ambiental. Selma Almeida Santos se dedica à produção científica no ramo de reprodução de serpentes há mais de 30 anos
Renato Rodrigues/Comunicação Butantan
Se fossemos listar algumas profissões perigosas, não faltariam respostas como policial, bombeiro, eletricista, minerador ou astronauta. Mas já parou para pensar nos cuidados que um biólogo que atua com manejo de serpentes peçonhentas deve ter?
O Terra da Gente conversou com a diretora técnica do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan (LEEV), Selma Almeida Santos, que há mais de 30 anos se dedica à produção científica no ramo de reprodução de serpentes.
Ao longo das mais de três décadas de carreira, ela conta que quase abandonou a herpetologia para ingressar na educação, tendo flertado com as áreas da filosofia e pedagogia. Durante a graduação, seu foco foi em formigas. Em sua chegada no Butantan trabalhou com aranhas para só depois passar a investigar parasitas em serpentes, quando de fato começou a engatar no ramo.
Nos serpentários, jiboias estão localizadas no centro da área, enquanto jararacas e cascavéis ficam nas extremidades
Mateus Serrer/Comunicação Butantan
Desde 2019 à frente do laboratório, Selma conta como é a rotina de quem trabalha diretamente com serpentes e quais são os principais desafios.
“Aqui no Butantan temos tanto as peçonhentas quanto as não-peçonhentas. Os cuidados são enormes. Nos serpentários temos que ter atenção para não pisar em alguma serpente ou se aproximar muito de algum indivíduo e receber uma picada. Isso se estende também para o biotério, temos que ser calmos e atentos e fazer o possível para não estressar o animal durante a contenção e manuseio “, explica.
Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), Selma divide seu dia a dia dentro do Butantan entre o serpentário e os biotérios.
Pesquisadores devem se atentar em não estressar o animal durante contenção e manuseio
Renato Rodrigues/Comunicação Butantan
“Nosso serpentário é uma das atrações mais visitadas, pois permite a observação de serpentes em um ambiente bem semelhante ao habitat natural. Embora sejam animais que causam medo nas pessoas, elas gostam e têm curiosidades. São bichos encantadores, que seduzem e causam paixão. Vale a pena conhecê-los de perto”, destaca a pesquisadora.
O centenário serpentário do Butantan é uma área verde toda cercada e com proteção para que as pessoas cheguem e possam observar mais de perto jararacas, cascavéis e jiboias. O local contribui com pesquisas voltadas à biodiversidade e conservação de espécies, além de promover a educação ambiental.
Roupa especial
De acordo com a pesquisadora, na área fechada do serpentário é importante o uso de botas de couro e avental para evitar um acidente ofídico. Já nos biotérios, são usados avental, máscara e propés (proteção para os pés) para não contaminar o ambiente.
Alimentação das serpentes ocorrem nos biotérios, onde o cuidado é essencial para não contaminação do ambiente
Renato Rodrigues/Comunicação Butantan
“Uma vez uma cascavel deu um bote e o veneno espirrou em meus olhos, fiquei preocupada e passei a tarde inteira em um hospital sob observação médica. Não me aconteceu nada grave, mas foi um momento de medo”, lembra.
A rotina dos colaboradores do laboratório é bastante intensa. No dia a dia, eles tentam observar o comportamento das serpentes, principalmente em relação ao bem-estar animal.
Por viver isolada, jararaca-ilhoa desenvolveu hábitos alimentares de caça em árvores, de onde abocanha as aves que migram para a ilha
Renato Rodrigues/Comunicação Butantan
“Nos atentamos se estão em alguma atividade, se estão dardejando a língua, que é o ato de colocar a língua para fora para se orientar no ambiente, se estão trocando de pele e se esta saiu completamente ou não, se há uma lesão nessa pele, além de verificar se está se alimentando bem ou regurgitando o alimento e se está prenha.
Soro antiofídico
Medicamento obtido a partir do veneno da própria serpente e da hiperimunização de animais como cavalos, o soro antiofídico é utilizado em hospitais de todo o Brasil para tratar pessoas que sofreram acidentes com cobras.
A picada de uma serpente e a quantidade de veneno inoculado podem levar a consequências variadas entre as pessoas
Renato Rodrigues/Comunicação Butantan
“A picada de uma serpente e a quantidade de veneno inoculado podem levar a consequências variadas entre os acidentados. Há pessoas que são alérgicas ao soro, enquanto outras tem mais sensibilidade ao veneno, o que provoca sintomas graves e reações mais fortes à picada”.
Selma possui colegas de trabalho que perderam o movimento nos dedos ou na região do corpo onde foram picados. Há ainda outros que gostavam muito de trabalhar com serpentes, mas que desenvolveram um processo alérgico e por isso foram afastados do trabalho e do convívio com as serpentes.
Rotina em serpentário
Trabalhar com manejo de serpentes exige muito planejamento. No serpentário do Butantan até mesmo o local onde as espécies ficam é pensado de maneira estratégica. As jiboias sempre ficam na parte central do serpentário. Já as jararacas e cascavéis ficam nas extremidades, separadas por muros.
Separamos dessa forma porque a parte central é bem maior e as jiboias ficam em maior número. Dentro desse espaço elas ficam soltas, dividindo o mesmo ambiente. Fazemos rodízio dos indivíduos também, porque elas não se alimentam dentro do serpentário, mas sim nos biotérios. Então quando chega a hora de alimentá-las, trocamos as que estão no serpentário com as que estão no biotério e assim vai ocorrendo o ciclo”
É lá nos biotérios que estão as jararacas de ilha, encontradas em locais bem específicos e remotos. Segundo a pesquisadora, essas são as estrelas do laboratório e só ficam na parte interna, fechada para visitação. Apesar de os biotérios serem voltados somente à pesquisa, indivíduos de jararacas de ilha pode ser vistos em exposição no Museu Biológico do Butantan.
Jararaca-ilhoa (Bothrops insularis), residente da Ilha da Queimada Grande, conhecida como ‘Ilha das cobras’
Otavio Augusto Vuolo/Comunicação Butantan
Os biotérios são instalações que mantêm serpentes para produção de soros e vacinas, sendo um espaço muito importante para manutenção da ciência e produção de conhecimento.
Nesse recinto, são encontradas as cinco jararacas de ilha: a jararaca-ilhoa (Bothrops insularis), residente da Ilha da Queimada Grande; a jararaca-de-Alcatraz (B. alcatraz), da Ilha dos Alcatrazes (SP); a jararaca-de-vitória (B. otavioi), da Ilha Vitória (SP); a jararaca-dos-franceses (B. sazimai), nativa da Ilha dos Franceses (ES); e a jararaca-da-moela (B. germanoi), que habita a Ilha da Moela (SP) e é a mais recente descoberta de jararaca de ilha, identificada em 2022.
Jararaca-de-Alcatraz (B. alcatraz) ocorre somente na Ilha dos Alcatrazes, no litoral do estado de São Paulo, próximo ao município de São Sebastião
Diego Santana/iNaturalist
Com as serpentes insulares, Selma pretende aprofundar os estudos para criar um banco de sêmen que possibilite a inseminação artificial com o objetivo de garantir a conservação das espécies.
Caso naja no DF
Em julho de 2020, um jovem estudante de medicina veterinária que criava de forma clandestina uma naja em Brasília, foi picado pelo animal que é uma das serpentes mais venenosas do mundo. Na época, ele foi internado em estado grave e o ataque instigou uma série de investigações acerca de tráfico ilegal de animais silvestres.
Cobra naja, no Instituto Butantan, em São Paulo
Comunicação Butantan
Pelo crime ambiental, o estudante, a mãe, o padrasto e um amigo tiveram penas convertidas em serviços comunitários.
“Em casos como esses ficamos muito preocupados, porque a gravidade desse acidente exigiu uma quantidade enorme de soro. Felizmente o Instituto Butantan conseguiu enviar a quantidade de soro que o acidentado precisava”, conta Selma Almeida Santos.
O fato de terem abandonado uma serpente peçonhenta que não pertence à nossa fauna em um shopping da cidade, sem o menor cuidado com o animal e com as pessoas, deixou os pesquisadores bastante indignados.
A naja resgatada chegou ao Butantan em 2021 e se encontra no Museu Biológico para exposição, onde atua como ferramenta de educação ambiental. “Seria muito difícil promovermos uma reintrodução desse indivíduo na natureza, isso porque ela já está há muito tempo fora de seu habitat, sendo alimentada e tratada por biólogos”.
Cuidados
O Instituto Butantan trabalha com várias espécies de serpentes, mas as peçonhentas mais comuns são as jararacas, cascavéis e corais, principalmente usadas para extração de veneno. As falsas corais são muito utilizadas para a atividade “Mão na Cobra, só no Butantan”, pois são serpentes mais dóceis.
Espécies como cascavéis oferecem sinais de que estão por perto, como o barulho com o chocalho
Alfredo Sabaliauskas/iNaturalist
O LEEV, do qual Selma atua como diretora técnica, é o laboratório responsável pela ação. Através do projeto, a população pode manipular algumas espécies de serpentes, mas sempre com acompanhamento de especialistas.
O Butantan reforça, sempre, que as pessoas jamais manipulem cobras sem a supervisão de alguém da área. Isso porque serpentes como a cobra-coral, por exemplo, podem ser verdadeiras ou falsas, sendo que a diferença entre elas é imperceptível para o público leigo.
“O recomendado é que a pessoa se afaste ao se deparar com uma serpente. Algumas oferecem sinais de que estão por perto. A cascavel mesmo faz um barulho com o chocalho. Não é para capturar a serpente, tem casos em que ela própria se afasta do homem, outros em que elas dão botes defensivos sem picar propriamente e inocular a peçonha”, conclui Selma.
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