Mãe de Campinas que planta Cannabis para filha consegue Habeas Corpus definitivo do TJ-SP em decisão inédita


Foi a primeira vez que a Defensoria Pública de São Paulo obteve no Tribunal um salvo-conduto para plantio da maconha para fins medicinais por prazo indeterminado. Angela com a filha Maria Luiza, ainda pequena, em plantação de maconha, usada para fins medicinais
Arquivo Pessoal
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu um novo Habeas Corpus (HC) a uma mãe de Campinas (SP) que planta Cannabis Sativa (maconha) em casa para produção de medicamento para a filha, diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
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Angela Aboin faz o plantio artesanal da planta desde 2016 e já havia conseguido outros cinco Habeas Corpus, mas com um ano de validade. Com a nova decisão da Justiça, inédita para a Defensoria Pública de São Paulo, a mãe fica autorizada a manter a produção de óleo da maconha para a filha de forma definitiva.
“Todos os anos você ter que se apresentar à justiça e viver nessa insegurança de poder perder um direito não era confortável. Exigia uma certa tensão de, pelo menos uma vez no ano, apresentar essa documentação e sempre com receio do desconhecido. Era um novo julgamento e em cada julgamento pode sair uma sentença diferente”, declarou Angela ao g1.
Segundo Defensora Pública Fernanda Balera, coordenadora do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, o caso da menina era, conforme os médicos, de tratamento por tempo indeterminado, por isso, o correto nesse caso era o HC definitivo.
“Todo ano a gente tinha que comprovar essa melhora (no estado de saúde da menina) e a família passar por essa aflição se ia ou não ser concedido, sendo que a recomendação médica sempre foi por tempo indeterminado. Então, a novidade é que, pela primeira vez, o salvo-conduto foi definitivo”.
Balera, que atuou no caso, ressaltou que foi a primeira vez que a Defensoria Pública obteve no TJ-SP um HC definitivo. “É a concretização do direito fundamental à saúde e à vida digna dela”, comemorou.
Registro criminal
O g1 contou a história de Angela e da filha, Maria Luiza, no mês passado. A mãe relatou que foi denunciada e chegou a responder por tráfico de drogas enquanto tentava tratar a filha, mas conseguiu decisões favoráveis da Justiça.
Apesar de comemorar a nova decisão do TJ-SP, Angela ponderou que ainda vive desconfortável por constar em nome dela o registro de tráfico de drogas e dos Habeas Corpus.
“Numa delegacia, quando uma pessoa vê uma mulher que respondeu por tráfico de drogas e ainda tem tantos Habeas Corpus é algo que gera um certo espanto para os profissionais. São artigos criminais que não dizem respeito ao que eu fiz pela minha filha”.
“Esse Habeas Corpus vem em definitivo, mas não muda isso. Ele não altera esse passado de criminalização, pelo contrário, a gente vai continuar marcado pelo sistema de Justiça para o resto das nossas vidas. Marcadas em delegacias e buscando uma alternativa para gente ser tratada como cidadã comum e não como criminosa”.
Angela Aboin mora em Campinas e é ativista pelo direito de usar de cannabis medicinal
Arquivo Pessoal
Salvo-conduto
No salvo-conduto, a Justiça determina que “Polícia Civil, Polícia Militar, Polícia Federal e/ou Guarda Municipal, sejam impedidas de proceder à prisão ou detenção da mãe pela produção ou plantação de cannabis sativa (maconha), em sua residência e que é exclusivamente destinada ao tratamento da filha”.
“Ficando ainda vedada a apreensão de tais plantas, assim evitando-se consequências que poderiam vir em prejuízo da menor, que é autista”, diz outro trecho.
Eficácia do medicamento na filha
Malu foi diagnosticada ainda na primeira infância com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e, até os 4 anos, vivia uma rotina bem diferente. Tinha convulsões diárias, não queria se alimentar e sequer sentia frio. Segundo a mãe, tudo mudou quando ela passou a fazer uso de cannabis medicinal.
Logo que soube do uso terapêutico da maconha com alternativa para a qualidade de vida de pessoas autistas, teve certeza que queria aquele tratamento para a filha. Naquela época, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) só autorizava a importação de produtos medicinais à base de cannabis em casos graves de epilepsia, o que não ocorria com Maria Luiza.
Em 2016, desesperada, ela decidiu apostar na produção caseira do óleo de maconha. Passou a cultivar a planta e, no ano seguinte, iniciou o uso.
No caso de Maria Luiza, a mãe afirma que os resultados foram imediatos. “Minha filha era muito agressiva, não comia, não dormia. Tinha várias dificuldades. Ela não sentia frio, eu não conseguia fazer ela usar uma blusa, não conseguia fazer ela ir à escola”.
“Ela dormiu melhor e eu fui vendo ali um alívio para o nosso sofrimento. Na escola, me perguntavam o que eu estava fazendo, porque ela tinha mudado”.
Além da experiência pessoal, Angela atua para que mais famílias tenham esse direito assegurado: motivada pela história da filha, se tornou ativista e virou coordenadora da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica do Brasil (FactBrasil).
“Crime é impedir as pessoas de terem acesso à medicina, à saúde, a uma qualidade de vida que, literalmente, traga vida para elas”, desabafa.
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Cuidados com o plantio artesanal
❗❗ É importante reforçar, no entanto, que a orientação dos especialistas é que cada paciente passe por avaliação médica para definir o tratamento específico do caso. Além disso, a produção “caseira” de produtos da maconha é mais suscetível a risco de contaminação por fungos, pesticidas e metais pesados segundo a pós-doutora pela Faculdade de Medicina da USP e presidente da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia, Ana Gabriela Hounie.
👉 Cada caso é um caso: Isso porque o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC), substâncias presentes na cannabis, têm funções diferentes no organismo, como detalha a pós-doutora pela Faculdade de Medicina da USP e presidente Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia, Ana Gabriela Hounie.
Habeas Corpus
Segundo o advogado Leonardo Sobral Navarro, portar ou possuir a planta in natura, assim como produzir o óleo, mesmo que para fins medicinais, é proibido e configura crime. Por isso, o paciente precisa ter o resguardo judicial de um habeas corpus como ocorreu com a mãe de Campinas. Entenda:
o habeas corpus é um instrumento judicial que resguarda a liberdade do indivíduo e deve ser obtido por meio de ação na Justiça;
o habeas corpus não é uma ‘autorização para plantar’, mas sim uma proteção para que o paciente não seja preso ou tenha seus produtos à base de cannabis apreendidos;
com o habeas corpus, a Justiça reconhece que, embora configure crime, o paciente está plantando e usando a maconha para fins de saúde;
para isso, é preciso que o habeas corpus detalhe o que será resguardado. É comum que o juiz limite o número de plantas cultivadas ou quantidade de óleo a ser extraída, por exemplo.
“A conduta que a pessoa tem de ter a planta em casa é entendida como ilícita. O habeas corpus precisa ter todo o contexto da situação e o paciente que, junto do advogado, precisa levar ao judiciário tudo o que ele tem, qual é a patologia, qual o tratamento, quais os benefícios que ele tem com a cannabis”.
“O habeas corpus vai certificar que o paciente não vai desviar a conduta, não vai vender, não vai fazer nada fora do que foi estabelecimento”, completa Navarro.
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