Joaquim da Costa Ribeiro, o desconhecido cientista brasileiro que revolucionou a eletrônica


O fenômeno que o cientista descobriu em 1944 provavelmente serviu de ponto de partida para uma vasta gama de desenvolvimentos eletrônicos que hoje fazem parte do nosso dia a dia. O fenômeno que o cientista descobriu em 1944 provavelmente serviu de ponto de partida para uma vasta gama de desenvolvimentos eletrônicos que hoje fazem parte do nosso dia a dia
Divulgação via BBC
Fora do mundo científico, quase ninguém ouviu falar dele. Mas o fenômeno que ele descobriu em 1944 provavelmente serviu de ponto de partida para uma vasta gama de desenvolvimentos eletrônicos que hoje fazem parte do nosso dia a dia: dos microfones de celulares a diversos tipos de sensores.
Estamos falando de Joaquim da Costa Ribeiro (1906-1960) e do efeito termodielétrico — também chamado de efeito Costa Ribeiro, em homenagem a ele.
Sua descoberta, embora não tenha implicado diretamente no desenvolvimento de algum aparato tecnológico, permitiu que pesquisadores compreendessem um fenômeno que se desdobrou — e ainda pode se desdobrar — em diversos avanços. Mas é uma história intrincada de um físico na periferia do mundo científico desenvolvido, com controvérsias e um reconhecimento que acabou sendo dado a outros cientistas que chegaram a conclusões semelhantes anos depois — e, provavelmente, tiveram acesso às publicações do brasileiro.
“Tenho pistas: a indústria estava interessada [no tema], um cientista [com quem eu conversei] falou que quando meu avô [Costa Ribeiro] e o parceiro dele começaram a investigar os eletretos, foi a pedido de uma companhia telefônica”, comenta à BBC News Brasil a cineasta Ana Costa Ribeiro, neta do cientista e autora do recém-lançado filme ‘Termodielétrico’, que narra essa história. “Há uma carta da [multinacional petrolífera] Shell pedindo para ele enviar a tese do fenômeno termodielétrico, e um dos inventores do transístor pediu para ele também o envio do trabalho.”
Inventado em 1947 por físicos norte-americanos, o transístor é um semicondutor que amplifica ou troca sinais eletrônicos e potências elétrica. Foi fundamental para o desenvolvimento dos eletrônicos portáteis.
“Então, parece que havia um interesse na época”, acrescenta. Segundo ela, tudo indica que as pesquisas do avô tenham influenciado uma gama de desenvolvimentos.
Com cera de carnaúba, uma descoberta
“A atuação dele no meio científico até hoje tem impacto para a ciência”, afirma à BBC News Brasil o físico e historiador da ciência Wanderley Vitorino da Silva Filho, professor na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e autor do livro ‘Costa Ribeiro: Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento da Física no Brasil’.
Nascido no Rio, Costa Ribeiro formou-se engenheiro civil e engenheiro mecânico-eletricista em 1928 na então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seguiu carreira acadêmica na mesma instituição e, cinco anos depois, se tornou livre-docente.
No início, mergulhou em pesquisas sobre radioatividade. “No campo da física nuclear, ele trabalhou identificando materiais minerais radioativos brasileiros”, explica Silva Filho.
Logo ele migrou para o que hoje se chama de física da matéria condensada. Foi um dos pioneiros. Sua obstinação estava em produzir eletretos usando materiais dielétricos — ou seja: produzir sólidos eletrizados com o emprego de materiais isolantes.
Foi aí que ele descobriu algo fascinante: para o eletreto se formar, não era preciso corrente elétrica. Isto ocorria com a solidificação do material isolante antes derretido por aquecimento. Em outras palavras, a mudança no estado físico causava a eletrificação dos materiais.
Costa Ribeiro batizou o fenômeno de efeito termodielétrico e o descreveu cientificamente em um artigo publicado em 1944 nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.
“O dielétrico é um tipo de material isolante elétrico, porém têm a capacidade de se polarizar, ou seja, eletricamente tem um lado positivo e outro negativo”, diz à BBC News Brasil o físico Emanuel Benedito de Melo, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
“Essa polarização pode ocorrer de várias formas, a mais comum é quando esse material é exposto a um campo elétrico externo. A outra forma é denominada termodielétrica, cujo dielétrico é susceptível a uma diferença de temperatura, pois a diferença do gradiente de temperatura pode gerar tensões ou distorções ao longo do retículo cristalino, podendo chegar até mesmo à mudança de fases”, ensina ele.
Melo acrescenta que tais tensões “podem gerar campo elétrico resultante no próprio material”.
A descoberta foi feita utilizando primeiramente um material essencialmente brasileiro: a cera da carnaúba — essa palmeira, nativa do país, é considerada a árvore-símbolo do Ceará e do Piauí.
“Ele pegou a cera da carnaúba em estado sólido e começou a derreter. Nesse processo, parte ficava líquida, porque estava em fusão, e parte ficava sólida. Enquanto a cera ia derretendo ele observou, com aparelhos, que entre as duas fases da passagem, surgia uma corrente elétrica”, conta Silva Filho. “Isso nunca tinha sido observado antes no mundo inteiro” na passagem de sólido para o líquido ou de líquido para o sólido é possível detectar passagem de corrente elétrica.”
A seguir, o cientista brasileiro repetiu o processo utilizando outros materiais dielétricos. “Como os resultados foram os mesmos, ele concluiu se tratar de um fenômeno universal”, diz Silva Filho.
Reconhecimento e controvérsias
A repercussão foi imediata. Costa Ribeiro se tornou professor catedrático dois anos depois da publicação do artigo. Naqueles anos, dedicou-se a conferências sobre o assunto no Brasil e na Europa.
A Academia Brasileira de Ciências passou a chamar o fenômeno de efeito Costa Ribeiro, em homenagem ao cientista — que, talvez constrangido com a nomenclatura laudatória, preferia seguir denominando sua descoberta de efeito termodielétrico. A mesma academia conferiu a ele o Prêmio Einstein pelo feito, como lembra à BBC News Brasil a historiadora Eliane Morelli Abrahão, pesquisadora na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Aí entram as controvérsias. Em maio de 1950, dois cientistas norte-americanos, Everly John Workman e Steve Reynolds, publicaram em um periódico internacional a descrição do mesmo efeito termodielétrico. E até hoje muitos artigos científicos se referem ao fenômeno como efeito Workman-Reynolds, preterindo o nome do brasileiro pioneiro.
Melo vê essa falta de reconhecimento, em partes, como um retrato “da dificuldade da comunicação científica da época”.
A Academia Brasileira de Ciências passou a chamar o fenômeno de efeito Costa Ribeiro, em homenagem ao cientista — que preferia seguir denominando a descoberta de efeito termodielétrico
Divulgação via BBC
Tormentas, sensores e nanotecnologia
Como desenvolvimento científico é feito da soma de conhecimentos previamente adquiridos, é difícil chegar a uma só consequência da descoberta de Costa Ribeiro. Mas os pesquisadores ouvidos pela reportagem apontaram diversos desdobramentos da física que não teriam sido possíveis sem que se soubesse como funciona o fenômeno termodielétrico.
“A principal aplicação [deste conhecimento] está na área de sensoriamento e detecção de sinais”, afirma à BBC News Brasil o físico Fábio Raia, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“[Também há] aplicação em acústica, na confecção de microfones do tipo capacitivo, conhecidos como microfone de eletreto, o mesmo que é utilizado em nossos smartphones e outros sistemas de comunicação com voz”, enumera. “[E ainda em] sensores de vibração, como o detector sísmico, sensores de radiação e medidores de pressão.”
Raia acrescenta que, graças a Costa Ribeiro, “a ciência brasileira teve papel importante na compreensão de fenômenos ligados ao armazenamento de carga elétrica pelos eletretos”.
“Esse efeito é bem complexo e bem específico”, acrescenta o físico. “Mas sua descoberta ajudou bastante a compreensão dos fenômenos relacionados aos eletretos, facilitando inclusive a indústria. Por isso, hoje, criar um dielétrico é um processo mais simples.”
Outra consequência foi a melhor compreensão da meteorologia. “Esse efeito […] está ligado à formação de eletricidade em nuvens, o que é bem interessante para entender a formação de tormentas”, comenta à BBC News Brasil o físico Rodrigo Parreira, que trabalhou na área de meteorologia na Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) e atualmente é CEO para a América Latina em uma empresa de tecnologia.
Parreira ressalta que o próprio Workman era meteorologista. “[O fenômeno termodielétrico] é uma das teorias sobre a formação de cargas [elétricas] em nuvens”, completa.
O físico Silva Filho lembra que o conhecimento do fenômeno também foi útil para o desenvolvimento da bomba atômica, citando que o mesmo é citado na bibliografia da pesquisa francesa que culminou com o desenvolvimento de uma linha de bombas nucleares a partir dos anos 1950. “Ele [Costa Ribeiro] era um expoente na França”, pontua.
Abrahão concorda que o “uso desse efeito” está “relacionado à radioatividade”, mas ressalta que o mesmo tem utilidade aplicada também no uso “pacífico da energia nuclear”. “Foi um importante passo para o campo da física”, ressalta a historiadora.
Há ainda um vasto campo a ser explorado. Um ponto importante está no potencial energético.
“De forma geral, os dielétricos são muito utilizados para a fabricação de capacitores que, tradicionalmente, são dispositivos que precisam de uma tensão elétrica como fonte de campo elétrico externo para poder armazenar cargas elétricas. A bateria do celular ou pilhas recarregáveis usam esse princípio”, contextualiza o físico Melo. “Nos termodielétricos, a grande vantagem seria de não precisar de uma tomada para gerar essa tensão, pois a própria diferença de temperatura faria esse papel.”
“Embora não haja [atualmente] uma aplicação substancial dos termodielétricos, vislumbra-se que eles possam ser empregados em sensores remotos ou em sistemas de cogeração de energia em termoelétricas, por exemplo, além de outras aplicações em nanotecnologia”, projeta ele.
Criação do CNPq
Nos anos 1950, Costa Ribeiro foi o primeiro delegado do Brasil junto ao Comitê Consultivo das Nações Unidas para aplicações pacíficas da energia nuclear e um dos fundadores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), criado em 1951 para financiar pesquisas no país.
“Quando ele começou suas pesquisas não existia nenhuma agência de fomento. Ele tirava dinheiro do próprio bolso e parte a universidade bancava. Mas não eram tantos recursos assim. Por isso ele foi um dos criadores do CNPq”, diz Silva Filho, ressaltando que Costa Ribeiro foi o primeiro diretor científico da instituição.
“Essa turma era heróica. Fazer ciência no Brasil naquela época não era para os fracos de espírito”, comenta Parreira.
Para Raia, Costa Ribeiro “foi uma grande amostra do que somos capazes de fazer como ciência brasileira, apesar dos poucos recursos da época e dos poucos recursos que temos hoje”.
Desde 2019, o ilustre cientista empresta seu nome ao Prêmio Joaquim da Costa Ribeiro, um reconhecimento anual conferido pela Sociedade Brasileira de Física (SBF). “A trajetória do homem e cientista Costa Ribeiro é inspiradora”, diz a historiadora Abrahão.
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