Minhas pintas pretas, Pessoa e Vinicius Portella

‘Viver bem o tempo que temos é um aprendizado que muitos não conseguem absorver’Arte: Kiko

“Quanta coisa eu contaria se pudesse, e se soubesse ao menos a língua, como a cor.”

Candido Portinari, Poemas de Portinari

Depois de correr uma hora na areia com o mar de Trancoso batendo, às vezes, nos meus pés, eu, que já tinha feito 50 minutos de musculação, pedi uma cerveja gelada. Qualquer coordenador de um grupo de AA haveria de reconhecer que essa era merecida. Quando levei a mão para pegar a garrafa, que estava trincando, vi, entre raios de sol, vários pontinhos pretos na minha mão. Num primeiro momento, pensei que fossem pedaços de algas que o rio Trancoso deixa no mar quando deságua aqui ao lado. Passei a mão e vi que eram minhas aquelas pintas. Na hora, emocionei-me lembrando da minha amada mãe que, do alto dos seus 97 anos, carrega com ela esse sinal da idade. São os indicadores exteriores de certa idade que vão se insinuando. Pedi uma caipiroska para brindar, solitariamente, com a cerveja. Era, enfim, um motivo de comemoração.

Viver bem o tempo que temos é um aprendizado que muitos não conseguem absorver. Viver comporta uma vontade e uma coragem de se posicionar e, de vez em quando, de se deixar levar. Quem briga com a própria existência, com a idade e com a fatalidade, muitas vezes, não tem tempo para tentar ser feliz. Por isso, penso que são nas pequenas escolhas que reside o segredo da leveza que pode fazer a diferença.

No final do ano, estava preparando minha mala de mão para uma viagem a Praga e a Paris. A escolha dos livros pode marcar sua viagem, quase definir. Queria reler Conceição Evaristo, no seu magnífico Olhos D’água, mas é muito sofrido. Um tiro no estômago. Só quem passou fome escreve dessa maneira gutural. E eu sou antigo, sofro. Estaria ali no bem bom da primeira classe. Sem culpa, registre-se. Temperei levando também a Insustentável Leveza do Ser, já que Praga era o destino. E, claro, Pessoa, com seu Desassossego, que sem ele o passaporte nem abre. Acrescentei, agora, entre esses meus companheiros de viagem, um livro do meu filho Vinicius. Ele e Pessoa têm lugar cativo e eu vou mudando as companhias. Na neve de Praga, no mar de Trancoso ou na solidão do Café de Flore, agora tenho minhas pintas na mão como companheiras inseparáveis. Elas, Pessoa e Vinicius Portella.

Remeto-me a Pessoa, na pessoa de Caeiro: “Ser poeta não é uma ambição minha. É minha maneira de estar sozinho”. Publicidade

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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